Resenha: Cartografia Sentimental de Suely Rolnik

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a edição. Porto Alegre: Sulina; Editora UFGRS, 2016

Em seu livro Cartografia Sentimental, Suely Rolnik constrói o que eu chamaria de romance-ficção historiográfico, criando uma situação cinematográfica na qual atuam as personagens que vão nos apresentando os conceitos da cartografia e da micropolítica. Dentre todas as situações criadas entre as personagens: as diferentes noivinhas e o cartógrafo, podemos acompanhar como se comporta o olhar do cartógrafo e como ele chega a algumas análises a partir dessas vivências.

Pensando no cartógrafo como um investigador, podemos aproximá-lo do papel do pesquisador, principalmente na sua disponibilidade para compreender diversas facetas de um fenômeno, a partir da sensibilidade do seu olhar, que é meticulosamente trabalhada com o objetivo de captar as forças que operam para além do visível. Isso (o além do visível)  é o que a autora chama de "corpo vibrátil", ou seja, por onde atravessam uma mistura de afetos resultada dos encontros, por onde reverberam os movimentos do desejo. De tudo isso, o que vale para o cartógrafo, o que ele busca, são as potencialidades para a criação de mundos e "o pleno funcionamento do desejo é uma verdadeira fabricação incansável de mundos, ou seja, o contrário de caos" (p.43).

Cartografar, portanto, não é criar mapas, desenhar o visível, e sim acompanhar a latitude e a longitude das intensidades dos afetos, marcar e remarcar a multiplicidade rizomática dos movimentos. Esse interesse pelo movimento e pela transformação geográfica dos territórios me aproxima da cartografia enquanto metodologia que se constrói em ação, extremamente justa à dinâmica que me propus a pesquisar: o circo como parte de uma contemporaneidade. Posso, assim, acompanhar seu movimento histórico e geográfico, nesses dois vetores indissociáveis, em movimento. Rolnik nos coloca que o livro, assim “como todacartografia foi se fazendo ao mesmo tempo que certos afetos foram sendo revisitados (ou visitados pela primeira vez) e que um território foi se compondo para eles”, ou seja, as ressignificações não se cristalizam, elas fluem e acompanham a transformação do objeto. Essa fluidez proposta é muito interessante, a meu ver, para a pesquisa em artes cênicas, que lida com fenômenos, experiências, acontecimentos, ações, substantivos todos preenchidos de movimento e efemeridade. A possibilidade de poder acompanhar esse movimento, como um passageiro no trem, nos coloca mais próximos e preparados para apreender o que nos propomos.

Apesar de ter tido dificuldade de acompanhar a construção de todos os conceitos que ela traz no livro, minha apreensão do processo de cartografia que a autora propõe me aproximou bastante da proposta metodológica da minha pesquisa, não pelo conteúdo, mas pelo processo. Em primeiro lugar, a interdisciplinaridade do meu objeto do estudo pede por ferramentas metodológicas diferentes. Também levo em consideração o fato de que estou inserida no contexto do objeto de estudo, o que exige uma metodologia aberta para a interferência da subjetividade do pesquisador. Além disso, a minha formação interdisciplinar me coloca em um terreno híbrido, mesmo em termos de caminho da pesquisa.

Todas essas observações me levaram a uma escolha pelo o que Fortin (2009) chama de “bricolagem” metodológica, ou seja, a criação de um metodologia in loco para a pesquisa, tomando como base ferramentas de diferentes métodos estudados, ou nas palavras da autora “integração dos elementos vindos dos horizontes múltiplos” (p.78). Essa escolha defende que a pesquisa em artes cênicas pode construir seus métodos a partir de uma antropofagia das outras disciplinas e com o contexto sócio-histórico da contemporaneidade que espero abordar, me alinhando com o que a Rolnik traz sobre o cartógrafo. Segundo a autora, "(...) dele (do cartógrafo) se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago." (p. 23)

De todas as imagens produzidas no livro, as imagens que faziam referência ao tropicalista/ antropófago foram as que mais me seduziram por representar para mim minha posição de artista-pesquisadora como “criadora de mundo” e não como uma descobridora de mundo. Pra mim essa é forma mais interessante de pesquisa em artes.

 

Referência

FORTIN, Sylvie Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a pesquisa

na prática artística. Revista Cena edição n. 7 Tradução de Helena Maria Mello. 2009.

 

Julia Henning

Artista pesquisadora

coletivo Instrumento de Ver

Mestranda em Artes Cênicas na Universidade de Brasília

resenha realizada pelo projeto de pesquisa Poéticas Circenses Contemporâneas

apresentado pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Cultura do Distrito Federal